Pular para o conteúdo principal

The Last of Us e Thomas Hobbes - Da Legitimidade do Poder


Afinal para que serve o governo? Tanto no Brasil quanto na Europa, nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte do globo? Como se justifica o poder? Como se legitima a obediência que nós, cidadãos de nossa pátria, devemos em relação a nossos superiores na hierarquia do governo? Não apenas hoje, mas no passado também, de qual forma concebida pela razão, pelo pensamento, o poder que nossos governantes têm sobre nós é justificado? Qual é a razão de ser do governo? Por que precisamos de governo? Por qual motivo o poder é constituído?


QUEST: Nesta postagem, o game The Last of Us será usado para pensar alguns dos fundamentos da política. O game da Naughty Dog elabora um cenário perfeito para pensar a questão do Poder e da Legitimidade. Será explorado um dos pilares da teoria de Thomas Hobbes, cujos argumentos estão na base do pensamento político e da arquitetura do Estado Moderno. Portanto, interpretar esta face do jogo é pensar alguns dos fundamentos políticos do nosso mundo.


THOMAS HOBBES E THE LAST OF US

Em The Last of Us a sociedade entra em colapso. Uma pandemia devastadora transforma seres humanos em criaturas canibais insanas e violentas. Chamados de infectados, esses seres não são mais humanos. Movem-se sedentos pela carne e pela vida dos sobreviventes humanos sadios. A causa da enfermidade é uma mutação do fungo Cordyceps. Os doentes afligidos por essa praga são controlados pelo fungo e não mais pela vontade humana. Atacam violentamente os humanos saudáveis e se debatem como bestas, emitindo ruídos estridentes. São agora criaturas monstruosas que perderam a natureza humana. Representam uma ameaça a todos aqueles que chegarem perto.


O LEVIATÃ PERDE O CONTROLE

A lei e a ordem não podem mais ser garantidas. As bases da civilização são severamente afetadas. A pandemia atinge mais de 60% da população. O caos se instala e o governo não tem mais poder para proteger a sua população. Os militares tomam a autoridade instalando lei marcial. Seu objetivo é tentar proteger a população em Zonas de Quarentena. Mas o poder fica contestado, disputado, a autoridade do exército não é bem aceita por todos. Os militares abusam do poder.


O Leviatã concebido na obra de Thomas Hobbes (1651) é o Poder Absoluto do Estado, cuja razão de ser é o estabelecimento da Paz, da Ordem e da Segurança. The Last of Us pode ser entendido como 'A Queda do Leviatã'. Quando o Estado não é mais capaz de garantir a segurança e o bom funcionamento da sociedade. O tema do jogo não é outro senão como pessoas comuns tentam sobreviver em um mundo pós-apocalíptico, pós-civilização. É uma questão de sobrevivência perante uma nova realidade absolutamente tensa. Que obriga os protagonistas a enfrentarem dilemas éticos e hostilidades tanto dos infectados quanto de outros seres humanos.



GUERRA DE TODOS CONTRA TODOS

Os Vaga-Lumes, um grupo armado, se rebelam contra o poder dos militares. Eles lutam pela volta do governo americano, The Last of Us se passa nos Estados Unidos. Este grupo também faz pesquisas com o objetivo de descobrir uma vacina contra a pandemia que assolou o mundo. Além dos Vaga-Lumes, outros grupos armados como os Caçadores também se insurgem contra o exército. Chegam a tomar o poder em algumas Zonas de Quarentena, assassinando os militares e aqueles que se opõe a seu objetivo. Na guerra por recursos, pessoas são mortas para que seus pertences sejam roubados. Assim o poder está em disputa, a autoridade é contestada e o que ocorre é uma guerra de um grupo contra outro.


A ameaça, portanto, não vem apenas dos infectados. Como “o homem é lobo do próprio homem”, diferentes grupos humanos combatem entre si. Ao longo de sua jornada, Joel, o protagonista, entra em enfrentamento contra os militares, contra os Caçadores e contra os Vaga-Lumes. O primeiro antagonista é Robert, outro contrabandista, digo outro porque o personagem que você controla, Joel, também se envolve em atividades ilegais, ganha a vida com o contrabando.


Diante do caos desse mundo pós-apocalíptico, não só os infectados, mas as pessoas comuns vão perdendo a sua humanidade, a sua integridade moral. A poética de The Last of Us é a perda do humano, do que nos constitui como civilização, do nosso acordo com o bem comum, nossa moralidade, nosso companheirismo e nossa solidariedade. The Last of Us traduzido para o português seria: ‘O Último de Nós’. A perda, o distanciamento de quem nós somos, da nossa civilização e da nossa civilidade.


THOMAS HOBBES ONTEM E HOJE

Mas como The Last of Us pode ser usado para pensar o governo? E, sobretudo, a legitimidade do poder? Qual é a relação do jogo da Naughty Dog com a autoridade política? Para responder a estas perguntas vamos introduzir Thomas Hobbes. Este teórico político inglês viveu entre 1588 e 1679, portanto a maior parte de sua vida no Século XVII. Hoje em dia ao se estudar qualquer tema que entre nos assuntos da Filosofia Política, Hobbes é um marco fundamental, estudado em todas as grandes universidades do Brasil e do mundo. Justamente porque suas obras, em especial o livro Leviatã, fornecem alguns dos fundamentos da construção do Estado Moderno. Por exemplo, a ideia de soberania e o monopólio da lei e da força pelo Estado. Da primeira, o poder soberano é aquele que está acima de todos, é supremo, não responde a ninguém. Do segundo, monopolizar a violência e a legislação significa que somente o poder estatal (soberano) tem a prerrogativa para a aplicação da força e da lei.


Nossa sociedade, nossa política e nosso direito não surgem do nada, toda a nossa vida social é desenvolvida no curso da História. Muitas vezes não com argumentos e ideias, mas por imposição pela força. Thomas Hobbes faz parte do grupo de autores clássicos que construíram as bases dos argumentos para a fabricação do Estado Moderno e do pensamento político. Em conjunto com outros filósofos da política, o mundo que hoje vivemos foi forjado pelas ideias desses influentes pensadores. De tal modo que, em um game como The Last of Us, cuja função principal é o entretenimento, a filosofia política ganha vida, exprimindo essa forma clássica criada por pensadores como Thomas Hobbes. É possível ver as consequências da ‘Queda do Leviatã’, da perda do controle e da autoridade do Estado no jogo da Naughty Dog.



A LEGITIMIDADE DO PODER

O mundo que o jogador vai desvendar neste game, é o mundo que Hobbes descreveu como condição natural da humanidade, ‘uma guerra de todos contra todos’. Assim a realidade brutal da vida humana, na ausência de uma autoridade superior para impor respeito, é o cenário pós-apocalíptico de The Last of Us. O que temos como argumento central na obra Leviatã de Thomas Hobbes é que a segurança precisa ser imposta por um poder acima de todos (soberano). A ideia é que os homens não se respeitam naturalmente, mas precisam ser obrigados a se respeitarem.


Para entender seu argumento é preciso fazer um esforço de imaginação, um experimento pelas ideias, pelo pensamento. Tal esforço é extremamente relevante para pensar o homem diante do mundo e diante dos outros homens, enfim para pensar filosofia política. Tal experimento é este: pense como agiria o homem na ausência de toda autoridade, na ausência da lei, da polícia que obriga a cumprir a lei, na ausência de todo poder de coerção pela força para obrigar o ser humano a cumprir os seus deveres, inclusive o de não matar, não roubar, não cometer injúrias. Imagine o homem completamente livre, sem nenhum impedimento para satisfazer tudo aquilo que for da sua vontade. Pense em uma liberdade total, o que alguns homens fariam com toda essa liberdade? Sem nenhum medo da lei, pois não haveria autoridade para impô-la. Como seria a vida e o mundo nessa situação? O que você, caro leitor, acha?


Para Hobbes está claro: nessas condições a vida do homem é “solitária, pobre, sórdida, bruta e curta”. Uma vida em constante medo em que mesmo os frutos do cultivo da terra e da indústria são incertos. Pois os homens temem que os frutos do seu trabalho sejam tomados por outros homens pela violência. Quem iria defendê-los, se não haveria exército, polícia, lei? Se um grupo de homens bem armados desejasse roubar todos os pertences e até tomar a vida de outras pessoas quem iria impedi-los? Em uma situação em que não há autoridade para obrigá-los a se manterem em respeito. A não tomar o que não é seu, e inclusive não tomar a vida do outro.


A FILOSOFIA POLÍTICA DE HOBBES

Mas, poderíamos nos perguntar se Hobbes está correto? Se é necessária uma força superior coercitiva para obrigar as pessoas a se comportarem respeitosamente? Se na ausência de uma autoridade soberana, entramos em uma situação de caos? Se a lei, a ordem, a segurança, precisam ser impostas? Se a natureza humana é boa ou má? Para Hobbes está claro: a natureza humana é má, e assim o respeito e a civilidade, ou mesmo, a civilização, precisam ser impostos pela força. De outro modo ocorre a mesma realidade presente em The Last of Us, guerra e violência de um grupo contra outro. Vaga-Lumes contra Militares e contra Caçadores, todos contra todos.


Para fortalecer o argumento de Thomas Hobbes vamos fazer um breve percurso pela história política da Europa. Inúmeras foram as guerras nesse continente, muitas vezes nos estudos apenas são citadas as principais. Diversas vezes nesta região um poder tentou subjugar e dominar o resto do continente. Isso ocorreu quando os Habsburgo tentaram, quando a França tentou e depois a Alemanha, apenas para citar três das mais importantes tentativas de estabelecer a hegemonia no continente durante a Era Moderna. De uma forma hobbesiana podemos dizer que um Leviatã só pode ser contido contra outro Leviatã. Somente quando um Estado forte foi capaz de conter as ambições imperialistas do outro é que a independência foi mantida.


Diferente caso aconteceu na Conquista da América, quando todo um continente sucumbiu ao domínio europeu. E hoje, como testemunho dos tempos passados, o continente da América majoritariamente fala as línguas português, espanhol, inglês. Todas elas de origem europeia. E o que dizer da Era Nuclear em que o poder devastador das bombas atômicas ajudou a impedir a eclosão de uma Terceira Guerra Mundial. Verdadeiramente um ‘equilíbrio pelo terror’, Leviatã contendo Leviatã. Um poder supremo aplacando outro.



CONDIÇÃO NATURAL DE GUERRA

Desta forma pretendo apontar como em grande parte das relações internacionais, vale a doutrina de Thomas Hobbes de que é necessário um poder para frear os impulsos destrutivos e estabelecer a segurança. Veja o caso da História, a humanidade não passou por tantas situações de guerra entre potências que só cessaram diante do medo da ‘destruição mútua’ resultante das armas atômicas? Porém não apenas no nível da política entre Estados, mas também várias das nossas ações como indivíduos denunciam a força da teoria hobbesiana.


Em uma passagem do Leviatã, Thomas Hobbes nos lembra de que mesmo debaixo das leis do governo vivemos em um Estado de desconfiança mútua. Pois trancamos nossas casas a chave e cadeado, escondemos nossos pertences de valor em lugares secretos ou dentro de cofres caso venham em nossa casa pessoas que não são de nossa alta confiança, em muitos lugares combinamos de andar em companhia com medo de sofrer violência, especialmente no caso das mulheres, mais vulneráveis nesse sentido. No nosso mundo contemporâneo podemos acrescentar também que quase todas as operações eletrônicas importantes são guardadas por senha. E por que fazemos isso? Se não pelo medo de que seja tomado o que é nosso? Que opinião nós temos dos nossos semelhantes agindo dessa maneira? Não denunciamos assim uma situação de medo que nos roubem, que nos matem, que nos prejudiquem. E se fazemos isso mesmo vivendo sob as leis do Estado, como seria sem o poder do Estado para tomar conta?


Hobbes não caracteriza ‘a guerra de todos contra todos’ apenas como a luta violenta física de fato. Ou seja, o conflito realmente acontecendo, mas a disposição para tal. O medo e a insegurança de que ocorra uma guerra também são levados em conta. A constante rivalidade e a desconfiança de que a violência e o roubo possam vir à tona. A condição de guerra não é apenas a luta acontecendo, mas o medo de que ela possa acontecer. O medo da violência faz parte da condição humana, mesmo que ela não esteja acontecendo no momento.



FINISH IT!

Portanto, segundo Hobbes, a razão de ser do governo é o estabelecimento da Paz, da Segurança e da Ordem. Para que os homens possam viver uma vida boa e assim gozar dos frutos do cultivo da terra e da indústria. A criação de um pacto, um contrato, em que os homens se unam para o Bem Comum. Um consenso de forma a que os homens se ponham em acordo uns com os outros. Em que a liberdade de um está em não fazer nada que prejudique a liberdade do outro. E para Hobbes isso só é possível através da criação de um Estado forte (Leviatã), que obrigue todos a se manterem em respeito. A Paz deve ser garantida pela espada, pelas armas, pela coerção. Este é um dos pilares da arquitetura do Estado Moderno.


Na ausência do Leviatã temos a guerra, o caos, o medo. É o poder do Estado que nos garante a segurança. Que obriga os homens a se manterem em civilidade. No game The Last of Us a autoridade política entra em colapso. O governo não é mais capaz de manter a ordem e a segurança das pessoas. Temos uma guerra entre diversos grupos rivais, em que situações moralmente tensas, que colocam nosso juízo ético, do que é certo e do que é errado, à prova. Desta forma essa produção da Naughty Dog é uma excelente obra para pensar a política e os fundamentos da nossa sociedade. É uma obra que, não somente vale muito a pena jogar, mas também pensar e tentar interpretar em suas tensões. É isso o que o GamesVida tem feito com os videogames desde 2016..


O VIDEOGAME COMO ARTE E JOGO

O GamesVida é um site e canal do Youtube que estuda os videogames na sua Totalidade. Aqui tanto a imaginação quanto a jogada é explorada. Com materiais de ‘Educação com Videogames’ e análise das jogadas. É o videogame investigado como Arte e Jogo. Para acesso rápido, fácil e organizado a todo o conteúdo do site consultar o seguinte link: Mapa do GamesVida.


Fonte das Imagens: Todas as três foram capturadas pelo recurso Share do Playstation 4. São da Galeria da Arte Conceitual da versão Remaster de The Last of Us.


BIBLIOGRAFIA:

Livros:

* HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. LeBooks, 2020.

* O Livro da Política. São Paulo: Globo Livros, 2017.

Aulas:

* SZELÉNYI, Iván; Foundations of Modern Social Theory. Lecture 2. ‘Hobbes: Authority, Human Rights and Social Order’. Gravado em 2009. Do site OPEN YALE COURSES. [Disponível no Link]

* SMITH, Steven B.; Introduction to Political Philosophy. Lecture 12, 13 e 14. ‘The Sovereign State: Hobbes, Leviathan’. Gravado em 2006. Do site OPEN YALE COURSES. [Disponível no Link]



[GAME OVER]

Comentários